sábado, 8 de janeiro de 2011

Partindo #3

Capítulo 3 - Amélia

O ano estava quase no fim mesmo. Tudo indicava que sim. As manhãs úmidas e as tardes de sol escaldante, as lojas começando a decoração de natal.

Aquele clima nostálgico, triste, e ao mesmo tempo, feliz.

As provas finais haviam começado. Eu e Amélia fomos os últimos a terminar de preencher a folha de respostas. Era assim que eu me sentia. Uma folha de respostas.Cada um me dava uma solução incerta, e só depois de um bom tempo eu poderia ver qual era a correta, ou no caso, a que mais valia a pena.

Saímos. Fazia um bom tempo que não saíamos juntos da escola, então ela me chamou para vasculharmos as lojas. E realmente, apenas vasculhávamos, sempre perguntando aos atendentes se havia tal coisa, que depois voltariamos. Engraçado... nós nunca voltávamos. Era um ritual divertido. Entramos nas lojas de sapatos para pessoas mais velhas e ficamos horas vendo as Molecas e Mocassins. Era estranho partilharmos tal gosto. Depois de tanto tempo procurando os tênis mais originais, aqueles que só nós dois tínhamos na cidade toda, chegamos a esse ponto. Sapatinho de aposentado, como Amélia sempre dizia. A loja de tecido era sempre a parte mais divertida. Era engraçado ver como os olhos de Amélia brilhavam quando ela tocava aqueles tecidos feitos de sei-lá-o-quê. Tinha certeza que naquela cabeça ela via as roupas que ela mesmo ia costurar, uma para cada metro de um tecido diferente. E disfarcei um sorriso quando eu a vi alisando um pano azul brilhante. Qualquer tom mais escuro do azul me lembrava de quando ela dizia que um dia se casaria com um dono de cassino, e vestiria um vestido azul longo, com cabelos cacheados, tingidos de avelã-tentação. Era seu bordão de fé, nunca perdia a graça. Mas eu via muito mais que isso naqueles olhos que mais pareciam as castanhas que ela sempre pedia pra comer quando ia em casa. Ainda bem que meu pai tinha arranjado um quebra-nozes.

Eu amava Amélia. Amava como irmão, mas preferia a amizade. Era aquele tipo de pessoa que te fazia feliz com qualquer projeto de sorriso. Ela tinha dentes separados, e isso não era um defeito. O sorriso dela se completava com aquele pequeno vácuo de espaço. Era como se ele pedisse que sorrissem também, para completá-lo de certa forma. Começamos a falar do ano que vinha, rindo de nós mesmos por termos confundido o preço de um apartamento no Jardim, em São Paulo. Lemos mil quando na verdade era um milhão. Mas que diferença fazia? Eram apenas zeros, eram dígitos sem valor comparado aos inúmeros planos que tínhamos. Na metade do assunto, passamos em frente à uma loja de antiguidades, e logo estávamos escolhendo telefones antigos e mesas do século retrasado para mobiliarmos nossa casa. Bem, o velho que cuidava da loja não tinha cara de quem cobrava por sonhar. Mas de qualquer forma, só estávamos olhando.

Amélia me lembrava Death Cab for Cutie em manhãs de chuva. Mas as músicas mais felizinhas, a maioria do Plans, de 2005. Era fácil saber o que falar quando ela brotava um novo assunto. Quando não era seu futuro cabelo loiro, com mechas ou descolorido embaixo, era São João, São Paulo, ou algum flashback que ela teve, de repente. E era divertido quando ela dizia algo que já havia dito um dia antes. Era uma nova versão da mesma história, e eu fingia que era a primeira vez que a escutava. Valia a pena ver como ela reagia à si mesma contando o mesmo fato, muitas vezes de forma diferente que a anterior. Principalmente quando se tratava do Diego. Ontem ela tinha reagido com desprezo sobre a história que o envolvia, hoje ela já estava mais confusa, se segurando pra não se sentir ansiosa, já que ia vê-lo no fim de semana. Que droga, até eu sabia o final da história e não podia contar para ela. No fim eles se veem e ela me conta a história com os olhinhos apertados, brilhando, igual quando ela segura uma roupa que ela acabou de costurar pra si mesma.

Nos despedimos do nosso dia de compras, com as mãos vazias, sem sacolas de plástico, por favor. Cada vez que saíamos nos lembrávamos das outras vezes, dos anos passados, de dias melhores.

- É, pelo visto vou ter que me mudar com vocês mesmo.

- Essa é a melhor notícia de todas.

Algo naquele jeito desajeitado de andar ainda me fazia acreditar que bons dias estavam por vir.

Partindo #2

Capítulo 2 - Guaraná Barato

Estávamos nos retoques finais. Eu, Buddy e Roger começamos a nos encontrar com mais freqüência, para decidir o que faríamos em conta da nossa mudança para A Cidade. Eu gostava tanto de falar sobre aquilo, que chegava a ficar ansioso logo quando marcávamos um novo encontro. Era sempre na Cookies, a lanchonete que praticamente passamos a vida toda – aquela vida em que nós já éramos amigos – bebendo, comendo os salgados com cheddar ou apenas tomando um café.

Eu estava muito feliz naqueles dias. Não dependia de tanto cigarro, era apenas para não perder o hábito. A peça que eu e meu grupo de teatro havíamos apresentado tinha sido um sucesso, eu tinha ido bem nas provas finais, o Natal estava invadindo as praças e lojas, com suas cores e luzes – as mesmas que eu sonhara umas noites atrás.

E ele estava comigo. Não fisicamente, mas estava. Era um presente adiantado de Natal, que eu só ia ter em mãos nos próximos meses.

E isso me deixava muito feliz. Me dava forças pra continuar, era como ter um estímulo a mais para conseguir qualquer coisa que eu quisesse.

Eu estava diante de seus defeitos, dos seus medos e dos meus também. E mesmo assim, conseguia gostar disso.

Por vezes, ajustava minha vida para que algum defeito nosso não a tirasse da linha tênue entra a perfeição e o desastre, como se pingasse algumas gotas a mais numa solução em que qualquer excesso ou recesso levaria ao fracasso. Arriscava. A quantidade exata eu não saberia nunca. Apenas dava tudo que eu achava que era aceitável, às vezes com algum arrependimento imediato, mas sem receio algum.

Às vezes olhava para os lados, só para ter certeza de que ele não estava me seguindo, escondido entre as vitrines e as motocicletas estacionadas.

Encontrei Buddy e Roger. Eles estavam discutindo, como sempre, e sorrindo ao mesmo tempo. Era uma batalha de sorrisos. Eles conseguiam se amar mesmo quando brigavam. Devem ser iguais aqueles casais que brigam, tacam vasos um no outro e se espancam, para no final terminarem com um beijo entre murros e palavrões.

– Eu vou ter que agüentar isso todo dia, pelo visto, não?

Rimos a tarde toda. Tínhamos os três a mesma ambição, um sonho que não era dividido entre nós, e sim multiplicado ao triplo, guardado entre incertezas e possibilidades.

O universo de incertezas possíveis. Eu tinha um desses, guardado à parte. Faltava uma peça para completá-lo. Eu lembro dela, tinha o formato de peça de quebra cabeça. Era isso que eu buscava. Encontrá-la, para completar o meu pequeno mundo de grandes sonhos e de passeios à luz das dezesseis horas.

Eu sempre me empolgava falando de São Paulo e do nosso apartamento com uma parede verde. Mas de certa forma era difícil deixar tudo pra trás.

Aquela época do ano era uma fábrica de nostalgia. As pessoas ficavam mais alegres, de certa forma. Não nevava, como nos filmes que víamos sobre o Natal pela TV. Fazia um calor desgraçado, isso sim, mas não era algo tão ruim. Poucos podem ter um Natal ensolarado, um fim de ano cor laranja-de-sol-que-bate-nas-laterais-dos-prédios.

Passei pelas casas que tinham cheiro de guaraná barato, pelas ruas em que não se precisava ter medo de atravessar, pelas lojas em que todos se conheciam. Eu fazia isso sempre.

Eu odiei essa cidade por tanto tempo, para que no final eu percebesse o tanto de saudades que eu sentiria.

Partindo - #1

Capítulo 1 - Sobre uma manhã de domingo

O dia já havia começado desde ontem, na verdade. Não havia dormido, pois estava trabalhando a noite. Mais um de mil bicos que eu lutava tanto pra conseguir. Um dos únicos que renderam algo.

Decidi sair pela rua. Eu tinha uma mania doentia por manhãs de domingo. Era incrível ver as ruas vazias, com a exceção de gente velha e crianças indo à missa e os bêbados indo dormir em seus bancos.

Lembro de quando eu saía às ruas para fotografar com a analógica que meu tio me emprestou por umas semanas. Conseguia fotos incríveis, desde o nascer do sol pelas montanhas perto de casa até fotos do centro vazio.

Resolvi passar pela feira. Já que eu estava num resgate de nostalgias, decidi me adentrar à tudo que já fez parte de mim. A feira era um bom exemplo disso. Meu avô me levava lá todos os domingos, após a missa da igreja da minha rua, para comer pastel com minha prima, na época em que ela dormia na minha avó todo fim de semana. Passávamos as tardes de sábado e domingo brincando no quartinho abandonado da casa da minha avó. Minha mãe odiava, pois era uma fortaleza de poeira e coisas velhas. Pra mim era um escape da realidade, um lugar incrível, que se transformava em hóteis assombrados ou uma casa perdida no meio de uma floresta - que na verdade era as inúmeras plantas da Dona Alice.

Como aquilo tinha mudado. Até ontem era impossível atravessar pelo meio da multidão... Agora eu poderia dar cambalhotas por ela, sem me preocupar em acertar alguém. Entrei na única loja em que vendia-se o cigarro que eu gostava, e comprei um maço, dessa vez com meu próprio dinheiro, o que recebi da festa que fotografara na noite passada. Me deixava com um peso menor na consciência pagar algo que meus pais não me permitiam comprar, sem ser com o dinheiro deles.

Subi uma quadra e fui até a padaria. Ultimamente eu a frequentava bastante, não sei porquê. Comprei coca e um salgado, e jurei que daria ele a algum mendigo da praça, caso visse um. Subi até a prefeitura, outro artefato de nostalgia. Por um momento vi todos meus amigos sentados naquela escada, foi o dia em que eu e Amélia nos tornamos reais amigos. Eu nem conhecia o álcool e não necessitava das coisas que hoje não me vejo sem. Era tudo simples naquela época, não brigávamos por coisas fúteis e éramos todos amigos. Minha lembrança se desfez para que eu acendesse o cigarro com fósforo, enquanto observava um grupo de meninas tirando fotos com a estátua do homem da peneira. Ri delas por dentro. Que bobas, felizes logo às oito da manhã.

Observei pequenas abelhas ao redor de mim. Não gostaram da minha presença, debaixo da árvore delas. Mudei de banco, uma pétala das flores amarelas que pendiam da árvore caiu. Um filete delas se soltou, e uma formiga o levou imediatamente. Incrível como ela suportava um peso que considerado ao seu, era bem maior. Coisas pequenas - e tão belas - ocorrendo por toda a parte. Me levantei e fui um pouco além da avenida, na praça central, e me sentei num dos bancos. Tantos cigarros pelo chão, quantas pessoas iriam morrer daquilo?

Aquela praça talvez fosse o elemento mais nostálgico de todos. Foi lá onde tudo começou... Os velhos amigos, as primeiras noites na rua, os carnavais, o coreto pra quando chovesse, aquele senhor nos oferecendo um pacote de chocolate que havia comprado para o filho, mas perdera o ônibus de volta para sua cidade. Tudo.

Não entendia as decorações natalinas. Usavam espuma branca para decorar a casa do Papai Noel. Vivemos num país tropical, só vai nevar quando o clima finalmente se reverter. Que decorassem com palmeiras, araras, areia e índios, mas neve? Quem se sentiria na Europa ou na América do Norte suando com aquele calor, logo de manhã? Mas tudo bem, relevei que se fizessem isso a maioria ia reclamar.

Era bonito olhar para cima. Os coqueiros se mesclavam com o céu azul-bebê da manhã, balançando suavemente com qualquer brisa. Não tinha câmera nenhuma para o momento, mas fotografei com os olhos. Coisas bobas e sem muito sentido, como essa, sempre surgiam na minha mente em momentos aleatórios, e essa entraria para a coleção. Me levantei para ir embora.

Passei pela sorveteria, memórias daquele lugar à parte. Era perto de casa, uma última opção de lugar para ir, quando não se tinha outro ou quando queríamos muito sorvete de pistache e amora. Desci e passei pelos muros do sanatório. Sempre imaginei quantos loucos - no bom e figurado sentido - ficavam lá dentro, escrevendo ou imaginando histórias que renderiam best-sellers pelo mundo todo, ou as senhoras que pintavam obras surrealistas de um mundo que nem elas sabiam não fazer parte. Imaginava com a esperança de que estivessem lá, fazendo tudo que eu pensava. O sol refletia nos muros da grande fortaleza pintada de azul-desbotado e branco-amarelo. Ele nascia na exata montanha ao leste, e nas exatas horas da manhã batia de forma incrível naquelas paredes. Eu sempre notei isso, mas nunca compartilhei. Que coisa mais besta observar quão bonito o sol decide penetrar em blocos de concreto pintados com tinta barata.

Passei em frente à escola em que eu sempre quis estudar. Sempre quis, por ela ter uma pequena floresta de pinheiros ao arredores. Me imaginava passando intervalos por lá, ou simplesmente fugindo das aulas para deitar naquela grama e observar como as árvores se agigantavam olhando-as de baixo. Aquele cheiro de flor por toda a parte... Me lembrava você. Incrível como era impossível querer escapar de você por uma manhã e fracassar. O vento trazia você aonde quer que eu fosse.

Observei uma pequena planta parasita enroscada no alambrado. Era uma daquelas orquídeas que se enroscam em qualquer lugar. Nunca as achei bonitas, minha mãe meio que havia me ensinado muito sobre orquídeas, flores e como reconhecer a beleza delas e seus significados, mesmo sem perceber.

Me surpreendi. Uma pequena flor lilás surgia de suas folhas grossas e acinzentadas. E o mais incrível: ela não tinha raiz fixa à terra. Como uma planta feia, parasita e cinza poderia florir algo tão pequeno e belo, sem ao menos ter raízes ao chão? Segui adiante.

Passei pela estrada ao lado do rio. Eu e a Florence, há tempos atrás, sempre pulávamos aquele rio e adentrávamos a floresta de bambus. Passávamos horas num universo paralelo. E não usávamos droga alguma para conseguir entrar nele. Andei sobre a guia da calçada - maldita mania de besta que me rendeu inúmeros tombos vistos por milhares de estudantes voltando da escola - e desviei das saúvas. Me lembrei de quando Joana me xingou por ter pisoteado algumas, naquele mesmo lugar, fazendo a mesma - e maldita - coisa.

Passei pela última praça antes de chegar em casa. Estava mal-cuidada, com a grama crescida demais. Nem parecia aquela praça em que eu e Florence ficávamos correndo e depois nos jogávamos na grama, passando horas olhando nuvens. A primavera trazia algumas proezas, como os dentes-de-leão floridos, com suas minúsculas flores espinhentas. O cheiro de árvore, de grama, de rio... Passei minha infância andando de bicicleta naquela praça. Tudo me convidava a ficar. Não sei se imaginava aquilo, mas até o vento balançava as patas-de-vaca quando eu passava perto delas. Era irrecusável observar tudo aquilo e não se sentir feliz.

Subi o caminho para casa. Passei em frente à casa de esquina, sempre lotada de sucata, onde morava uma mulher sem um dos braços. A filha dela falecera logo após sua netinha ter nascido. E ela cuidou da pequena mesmo assim, mesmo tendo de cuidar de sua mãe meio gagá, daquelas senhoras que usam Molecas e meias escuras. Se ela conseguira tudo isso, se até uma parasita sem graça conseguia florir sem ter de onde arrancar alimento, por que eu não conseguiria? Eu sonhava algo tão ambicioso, aquilo era pedir muito? Eu só queria ir embora, mesmo com todo aquele universo que ninguém mais enxergava além de mim - e, em partes, da Florence, também - me convidando pra ficar...

Pisei no cigarro, e adentrei o mesmo portão de sempre.