O ano estava quase no fim mesmo. Tudo indicava que sim. As manhãs úmidas e as tardes de sol escaldante, as lojas começando a decoração de natal.
Aquele clima nostálgico, triste, e ao mesmo tempo, feliz.
As provas finais haviam começado. Eu e Amélia fomos os últimos a terminar de preencher a folha de respostas. Era assim que eu me sentia. Uma folha de respostas.Cada um me dava uma solução incerta, e só depois de um bom tempo eu poderia ver qual era a correta, ou no caso, a que mais valia a pena.
Saímos. Fazia um bom tempo que não saíamos juntos da escola, então ela me chamou para vasculharmos as lojas. E realmente, apenas vasculhávamos, sempre perguntando aos atendentes se havia tal coisa, que depois voltariamos. Engraçado... nós nunca voltávamos. Era um ritual divertido. Entramos nas lojas de sapatos para pessoas mais velhas e ficamos horas vendo as Molecas e Mocassins. Era estranho partilharmos tal gosto. Depois de tanto tempo procurando os tênis mais originais, aqueles que só nós dois tínhamos na cidade toda, chegamos a esse ponto. Sapatinho de aposentado, como Amélia sempre dizia. A loja de tecido era sempre a parte mais divertida. Era engraçado ver como os olhos de Amélia brilhavam quando ela tocava aqueles tecidos feitos de sei-lá-o-quê. Tinha certeza que naquela cabeça ela via as roupas que ela mesmo ia costurar, uma para cada metro de um tecido diferente. E disfarcei um sorriso quando eu a vi alisando um pano azul brilhante. Qualquer tom mais escuro do azul me lembrava de quando ela dizia que um dia se casaria com um dono de cassino, e vestiria um vestido azul longo, com cabelos cacheados, tingidos de avelã-tentação. Era seu bordão de fé, nunca perdia a graça. Mas eu via muito mais que isso naqueles olhos que mais pareciam as castanhas que ela sempre pedia pra comer quando ia em casa. Ainda bem que meu pai tinha arranjado um quebra-nozes.
Eu amava Amélia. Amava como irmão, mas preferia a amizade. Era aquele tipo de pessoa que te fazia feliz com qualquer projeto de sorriso. Ela tinha dentes separados, e isso não era um defeito. O sorriso dela se completava com aquele pequeno vácuo de espaço. Era como se ele pedisse que sorrissem também, para completá-lo de certa forma. Começamos a falar do ano que vinha, rindo de nós mesmos por termos confundido o preço de um apartamento no Jardim, em São Paulo. Lemos mil quando na verdade era um milhão. Mas que diferença fazia? Eram apenas zeros, eram dígitos sem valor comparado aos inúmeros planos que tínhamos. Na metade do assunto, passamos em frente à uma loja de antiguidades, e logo estávamos escolhendo telefones antigos e mesas do século retrasado para mobiliarmos nossa casa. Bem, o velho que cuidava da loja não tinha cara de quem cobrava por sonhar. Mas de qualquer forma, só estávamos olhando.
Amélia me lembrava Death Cab for Cutie em manhãs de chuva. Mas as músicas mais felizinhas, a maioria do Plans, de 2005. Era fácil saber o que falar quando ela brotava um novo assunto. Quando não era seu futuro cabelo loiro, com mechas ou descolorido embaixo, era São João, São Paulo, ou algum flashback que ela teve, de repente. E era divertido quando ela dizia algo que já havia dito um dia antes. Era uma nova versão da mesma história, e eu fingia que era a primeira vez que a escutava. Valia a pena ver como ela reagia à si mesma contando o mesmo fato, muitas vezes de forma diferente que a anterior. Principalmente quando se tratava do Diego. Ontem ela tinha reagido com desprezo sobre a história que o envolvia, hoje ela já estava mais confusa, se segurando pra não se sentir ansiosa, já que ia vê-lo no fim de semana. Que droga, até eu sabia o final da história e não podia contar para ela. No fim eles se veem e ela me conta a história com os olhinhos apertados, brilhando, igual quando ela segura uma roupa que ela acabou de costurar pra si mesma.
Nos despedimos do nosso dia de compras, com as mãos vazias, sem sacolas de plástico, por favor. Cada vez que saíamos nos lembrávamos das outras vezes, dos anos passados, de dias melhores.
- É, pelo visto vou ter que me mudar com vocês mesmo.
- Essa é a melhor notícia de todas.
Algo naquele jeito desajeitado de andar ainda me fazia acreditar que bons dias estavam por vir.